Arquivo mensal: setembro 2010

Democracia em risco.

Vivemos uma fase de democracia virtual. Não no sentido da utilização dos meios eletrônicos e da web como sucedâneos dos processos diretos, mas no sentido que atribui à palavra “virtual” o dicionário do Aurélio: algo que existe como faculdade, porém sem exercício ou efeito atual.
Faz tempo que eu insisto: o edifício da democracia, e mesmo o de muitas instituições econômicas e sociais, está feito no Brasil. A arquitetura é bela, mas, quando alguém bate à porta, a monumentalidade das formas institucionais desfaz-se em um eco que indica estar a casa vazia por dentro.

Ainda agora a devassa da privacidade fiscal de tucanos e de outras pessoas mais mostra a vacuidade das leis diante da prática cotidiana. Com a maior desfaçatez do mundo, altos funcionários, tentando elidir a questão política – como se estivessem tratando com um povo de parvos –, proclamam que “não foi nada não; apenas um balcão de venda de dados…”.

E fica o dito pelo não dito, com a mídia denunciando, os interessados protestando e buscando socorro no Judiciário, até que o tempo passe e nada aconteça.
Não tem sido assim com tudo o mais? O que aconteceu com o “dossiê” contra mim e minha mulher feito na Casa Civil da Presidência, misturando dados para fazer crer que também nós nos fartávamos em usar recursos públicos para fins privados?

E os gastos da atual Presidência não se transformaram em “secretos” em nome da segurança nacional? E o que aconteceu de prático? Nada. Estamos todos felizes no embalo de uma sensação de bonança que deriva de uma boa conjuntura econômica e da solidez das reformas do governo anterior.

No momento do exercício máximo da soberania popular, o desrespeito ocorre sob a batuta presidencial.

Nas democracias, é lógico e saudável que os presidentes e altos dirigentes eleitos tomem partido e se manifestem em eleições.

Mas é escandalosa a reiteração diária de posturas político-partidárias, dando ao povo a impressão de que o chefe da nação é chefe de uma facção em guerra para arrasar as outras correntes políticas.

Há um abismo entre o legítimo apoio aos partidários e o abuso da utilização do prestígio do presidente, que além de pessoal é também institucional, na pugna política diária.

Chama a atenção que nenhum procurador da República, nem mesmo candidatos ou partidos, haja pedido o cancelamento das candidaturas beneficiadas, senão para obtê-lo, ao menos para refrear o abuso. Por que não se faz? Porque pouco a pouco estamos nos acostumando que é assim mesmo.

Na marcha em que vamos, na hipótese de vitória governista – que ainda dá para evitar – incorremos no risco futuro de vivermos uma simulação política ao estilo do PRI mexicano – se o PT conseguir a proeza de ser “hegemônico” – ou do peronismo, se mais do que a força de um partido preponderar a figura do líder.

Dadas as características da cultura política brasileira, de leniência com a transgressão e criatividade para simular, o jogo pluripartidário pode ser mantido na aparência, enquanto na essência se venha a ter um partido para valer e outro(s) para sempre se opor, como durante o autoritarismo militar.

Pior ainda, com a massificação da propaganda oficial e o caudilhismo renascente, poderá até haver anuência do povo e a cumplicidade das elites para com essa forma de democracia quase plebiscitária.

Aceitação pelas massas na medida em que se beneficiem das políticas econômico-sociais, e das elites porque estas sabem que neste tipo de regime o que vale mesmo é uma boa ligação com quem manda.
O “dirigismo à brasileira”, mesmo na economia, não é tão mau assim para os amigos do rei ou da rainha.

É isso que está em jogo nas eleições de outubro: que forma de democracia teremos, oca por dentro ou plena de conteúdo. Tudo mais pesará menos.
Pode ter havido erros de marketing nas campanhas oposicionistas, assim como é certo que a oposição se opôs menos do que deveria à usurpação de seus próprios feitos pelos atuais ocupantes do poder.

Esperneou menos diante dos pequenos assassinatos às instituições que vêm sendo perpetrados há muito tempo, como no caso das quebras reiteradas de sigilos.
Ainda assim, é preciso tentar impedir que os recursos financeiros, políticos e simbólicos reunidos no Grupão do Poder em formação tenham força para destruir não apenas candidaturas, mas um estilo de atuação política que repudia o personalismo como fundamento da legitimidade do poder e tem a convicção de que a democracia é o governo das leis e não das pessoas.

Estamos no século 21, mas há valores e práticas propostos no século 18 que foram se transformando em prática política e que devem ser resguardados, embora se mostrem insuficientes para motivar as pessoas. É preciso aumentar a inclusão e ampliar a participação.

É positivo se valer de meios eletrônicos para tomar decisões e validar caminhos. É inaceitável, porém, a absorção de tudo isso pela “vontade geral” encapsulada na figura do líder. Isso é qualquer coisa, menos democracia.
Se o fosse, não haveria por que criticar Mussolini em seus tempos de glória, ou o Getúlio do Estado Novo (que, diga-se, não exerceu propriamente o personalismo como fator de dominação) e assim por diante.

É disso que se trata no Brasil de hoje: estamos decidindo se queremos correr o risco de um retrocesso democrático em nome do personalismo paternal (e, amanhã, quem sabe, maternal).
Por mais restrições que alguém possa ter ao encaminhamento das campanhas ou mesmo a características pessoais de um ou outro candidato, uma coisa é certa: o governismo tal como está posto representa um passo atrás no caminho da institucionalização democrática.
Há tempo ainda para derrotá-lo. Eleição se ganha no dia.

Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e ex-presidente da República

A banda podre

Quando um presidente da República trata a quebra de sigilo fiscal do adversário como “futrica”, e sua candidata, líder absoluta nas pesquisas eleitorais, define esse crime como um simples “malfeito”, algo vai mal, muitíssimo mal. Mas sempre foi assim: quanto maior é o escândalo, mais o maestro e seu coro vigoroso tentam esconder os podres da banda. E como ela há anos reina sem concorrência, continua a agradar a maior parte dos convivas.

Ensaiados às pressas para uma contenda que não se imaginava vir à tona agora, os tocadores de bumbo, surdo e prato atravessaram brabo na melodia. O presidente da Receita, Otacílio Cartaxo, um dia disse uma coisa – “não há indícios de motivação política na quebra de sigilo” – , noutro fez outra, sempre sendo desmentido pelos fatos poucas horas depois.

A Receita desentoou de novo e quase implodiu a fanfarra quando garantiu provas de que fora Verônica Serra, filha do candidato do PSDB José Serra, quem pedira seus dados fiscais em uma agência de Santo André. Algo que um maestro experimentado como Lula sempre soube que não cabia nem em cantiga de ninar.

Para fugir da conotação eleitoral do enredo de horror instalado na Receita, o ministro da Fazenda Guido Mantega chegou a admitir que a então respeitada instituição pela qual deveria zelar é uma espécie de casa de mãe Joana, onde o número de quebras de sigilo é muito maior do que o dos políticos tucanos arrombados. Em qualquer país sério isso seria motivo de sobra para entupir a tuba.

Mas os ensurdecedores acordes desconexos não foram suficientes para inibir os animadores da banda. Ocupando todos os espaços possíveis, não faltaram trompas petistas para reverberar a falseta de que o próprio Serra teria armado o golpe contra a sua filha para obter ganhos eleitorais. Algo que só quem está acostumado com os labirintos dos esgotos poderia elucubrar.

Do outro lado, a trupe de José Serra continua sem achar o tom. Ora bate, ora assopra. Chega a produzir letra e música para o adversário, fornecendo-lhe todas as armas, como o fez ao entrar na Justiça Eleitoral para impugnar a candidatura de Dilma.

Hora e lugar errados.

Nada como uma sentença do TSE para embasar o discurso de que as vítimas são os algozes e que o PSDB queria era ganhar no tapetão. Melhor teria sido recorrer a outras esferas da Justiça, buscando não os trunfos eleitorais de que tanto precisa, mas o Estado de Direito. Cedo ou tarde o país aplaudiria.

Mas se Serra peca, o pecado capital vem do presidente Lula, que sempre se supera. Entoa a cantiga que quer. E nem se importa se desafina. Como general-mor da banda, faz o que o seu tino de poder manda. A seu bel prazer dispõe os melofones, fliscornes e pistões. E eles fazem tanto barulho que parecem ter êxito em esconder a desfaçatez de Lula ao admitir que soubera no início do ano – e dito pelo então governador de São Paulo – da hipótese de violação dos dados fiscais de Verônica. Nada fez, e ainda joga a culpa em Serra. “Ele não me alertou, ele se queixou”. E sua candidata Dilma Rousseff, é claro, segue a mesma partitura.

Mary Zaidan é jornalista, trabalhou nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, em Brasília. Foi assessora de imprensa do governador Mario Covas em duas campanhas e ao longo de todo o seu período no Palácio dos Bandeirantes. Há cinco anos coordena o atendimento da área pública da agência ‘Lu Fernandes Comunicação e Imprensa

Deu na Folha de S. Paulo
O alerta de Lula (Editorial)

Há 14 anos, em artigo na Folha, o atual mandatário acenava com os riscos de “mexicanização” e uso abusivo da máquina pública.

“Num país onde se pratica o fisiologismo explícito e o uso e abuso da máquina pública em proveito próprio, a reeleição pode conduzir a um processo de mexicanização”.

O alerta foi emitido em 1996 por Luiz Inácio Lula da Silva em artigo publicado pela Folha.

O líder petista, que havia dois anos perdera a eleição no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso, mostrava-se preocupado.

Via o risco de, aprovada a possibilidade de renovação do mandato, o PSDB transformar-se numa espécie de Partido Revolucionário Institucional -o PRI, que governou o México de 1926 a 2000.

Lula chamava a atenção para o peso desproporcional que os detentores do poder podem exercer num processo eleitoral por meio do aparelhamento o Estado e nebulosa arrecadação de fundos:

“O Estado mobiliza um conjunto de obras e recursos que podem ser postos a serviço de caixinhas eleitorais e troca de favores. Não é segredo para ninguém que as grandes obras públicas podem ser sobrefaturadas, e um significativo percentual delas acaba nas contas numeradas dos assessores dos mandatários, não para uso pessoal, dirão eles, é claro, mas para financiar a futura campanha. São rios de dinheiro […] para fazer propaganda de campanha e programas mirabolantes, com a mais sofisticada técnica de comunicações para ludibriar o eleitorado”.

Diante das pretensões da situação, favorável à continuidade de FHC para que o Brasil prosseguisse dando certo, Lula alfinetava: “E por que, então, não ressuscitar de uma vez o partido monarquista e colocar FHC no trono do Brasil para sempre?”.

Como se sabe, aprovada e emenda da reeleição, o tucano conquistou mais um mandato e foi sucedido pelo próprio petista. Os artifícios retóricos e os argumentos que constavam do artigo de Lula poderiam, quase que integralmente, ser agora esgrimidos contra seu próprio governo.

De fato, poucas vezes na história republicana o fisiologismo foi tão explícito e subordinou-se tanto a máquina pública ao proveito partidário.

Por certo, tornaram-se ainda mais caudalosos os rios de dinheiro vertidos na candidatura continuísta -e mais sofisticadas as técnicas de comunicação para “ludibriar o eleitorado”.

Utilizou-as Lula, com sua vocação de animador de plateias, para inventar a herdeira que, sem nenhuma experiência eleitoral, poderá ocupar seu trono – ou melhor, a cadeira presidencial.

As recorrentes comparações com a história mexicana, que ora voltam à cena, podem ser úteis nos torneios verbais, mas não vão muito além disso. Por mais longos que possam ser os ciclos de grupos políticos no poder, as democracias evoluídas (o que não era o caso do México) acabam sempre por experimentar uma saudável alternância administrativa.

São os fundamentos desse sistema de governo que, acima de tudo, precisam ser fortalecidos no Brasil.

Não há dúvida de que a experiência democrática em nosso país já atingiu padrões elogiáveis de funcionamento.

É preciso porém cultivá-la para que não se perca em consensos perigosos – mais ainda neste momento em que o continuísmo político poderá consumar-se em inédita hegemonia.

FRASE DO DIA

Na marcha em que vamos, na hipótese de vitória governista – que ainda dá para evitar – incorremos no risco futuro de vivermos uma simulação política ao estilo do PRI mexicano – se o PT conseguir a proeza de ser “hegemônico” – ou do peronismo, se mais do que a força de um partido preponderar a figura do líder.

Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República

Democracia em risco.

Vivemos uma fase de democracia virtual. Não no sentido da utilização dos meios eletrônicos e da web como sucedâneos dos processos diretos, mas no sentido que atribui à palavra “virtual” o dicionário do Aurélio: algo que existe como faculdade, porém sem exercício ou efeito atual.
Faz tempo que eu insisto: o edifício da democracia, e mesmo o de muitas instituições econômicas e sociais, está feito no Brasil. A arquitetura é bela, mas, quando alguém bate à porta, a monumentalidade das formas institucionais desfaz-se em um eco que indica estar a casa vazia por dentro.

Ainda agora a devassa da privacidade fiscal de tucanos e de outras pessoas mais mostra a vacuidade das leis diante da prática cotidiana. Com a maior desfaçatez do mundo, altos funcionários, tentando elidir a questão política – como se estivessem tratando com um povo de parvos –, proclamam que “não foi nada não; apenas um balcão de venda de dados…”.

E fica o dito pelo não dito, com a mídia denunciando, os interessados protestando e buscando socorro no Judiciário, até que o tempo passe e nada aconteça.
Não tem sido assim com tudo o mais? O que aconteceu com o “dossiê” contra mim e minha mulher feito na Casa Civil da Presidência, misturando dados para fazer crer que também nós nos fartávamos em usar recursos públicos para fins privados?

E os gastos da atual Presidência não se transformaram em “secretos” em nome da segurança nacional? E o que aconteceu de prático? Nada. Estamos todos felizes no embalo de uma sensação de bonança que deriva de uma boa conjuntura econômica e da solidez das reformas do governo anterior.

No momento do exercício máximo da soberania popular, o desrespeito ocorre sob a batuta presidencial.

Nas democracias, é lógico e saudável que os presidentes e altos dirigentes eleitos tomem partido e se manifestem em eleições.

Mas é escandalosa a reiteração diária de posturas político-partidárias, dando ao povo a impressão de que o chefe da nação é chefe de uma facção em guerra para arrasar as outras correntes políticas.

Há um abismo entre o legítimo apoio aos partidários e o abuso da utilização do prestígio do presidente, que além de pessoal é também institucional, na pugna política diária.

Chama a atenção que nenhum procurador da República, nem mesmo candidatos ou partidos, haja pedido o cancelamento das candidaturas beneficiadas, senão para obtê-lo, ao menos para refrear o abuso. Por que não se faz? Porque pouco a pouco estamos nos acostumando que é assim mesmo.

Na marcha em que vamos, na hipótese de vitória governista – que ainda dá para evitar – incorremos no risco futuro de vivermos uma simulação política ao estilo do PRI mexicano – se o PT conseguir a proeza de ser “hegemônico” – ou do peronismo, se mais do que a força de um partido preponderar a figura do líder.

Dadas as características da cultura política brasileira, de leniência com a transgressão e criatividade para simular, o jogo pluripartidário pode ser mantido na aparência, enquanto na essência se venha a ter um partido para valer e outro(s) para sempre se opor, como durante o autoritarismo militar.

Pior ainda, com a massificação da propaganda oficial e o caudilhismo renascente, poderá até haver anuência do povo e a cumplicidade das elites para com essa forma de democracia quase plebiscitária.

Aceitação pelas massas na medida em que se beneficiem das políticas econômico-sociais, e das elites porque estas sabem que neste tipo de regime o que vale mesmo é uma boa ligação com quem manda.
O “dirigismo à brasileira”, mesmo na economia, não é tão mau assim para os amigos do rei ou da rainha.

É isso que está em jogo nas eleições de outubro: que forma de democracia teremos, oca por dentro ou plena de conteúdo. Tudo mais pesará menos.
Pode ter havido erros de marketing nas campanhas oposicionistas, assim como é certo que a oposição se opôs menos do que deveria à usurpação de seus próprios feitos pelos atuais ocupantes do poder.

Esperneou menos diante dos pequenos assassinatos às instituições que vêm sendo perpetrados há muito tempo, como no caso das quebras reiteradas de sigilos.
Ainda assim, é preciso tentar impedir que os recursos financeiros, políticos e simbólicos reunidos no Grupão do Poder em formação tenham força para destruir não apenas candidaturas, mas um estilo de atuação política que repudia o personalismo como fundamento da legitimidade do poder e tem a convicção de que a democracia é o governo das leis e não das pessoas.

Estamos no século 21, mas há valores e práticas propostos no século 18 que foram se transformando em prática política e que devem ser resguardados, embora se mostrem insuficientes para motivar as pessoas. É preciso aumentar a inclusão e ampliar a participação.

É positivo se valer de meios eletrônicos para tomar decisões e validar caminhos. É inaceitável, porém, a absorção de tudo isso pela “vontade geral” encapsulada na figura do líder. Isso é qualquer coisa, menos democracia.
Se o fosse, não haveria por que criticar Mussolini em seus tempos de glória, ou o Getúlio do Estado Novo (que, diga-se, não exerceu propriamente o personalismo como fator de dominação) e assim por diante.

É disso que se trata no Brasil de hoje: estamos decidindo se queremos correr o risco de um retrocesso democrático em nome do personalismo paternal (e, amanhã, quem sabe, maternal).
Por mais restrições que alguém possa ter ao encaminhamento das campanhas ou mesmo a características pessoais de um ou outro candidato, uma coisa é certa: o governismo tal como está posto representa um passo atrás no caminho da institucionalização democrática.
Há tempo ainda para derrotá-lo. Eleição se ganha no dia.

Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e ex-presidente da República

A banda podre

Quando um presidente da República trata a quebra de sigilo fiscal do adversário como “futrica”, e sua candidata, líder absoluta nas pesquisas eleitorais, define esse crime como um simples “malfeito”, algo vai mal, muitíssimo mal. Mas sempre foi assim: quanto maior é o escândalo, mais o maestro e seu coro vigoroso tentam esconder os podres da banda. E como ela há anos reina sem concorrência, continua a agradar a maior parte dos convivas.

Ensaiados às pressas para uma contenda que não se imaginava vir à tona agora, os tocadores de bumbo, surdo e prato atravessaram brabo na melodia. O presidente da Receita, Otacílio Cartaxo, um dia disse uma coisa – “não há indícios de motivação política na quebra de sigilo” – , noutro fez outra, sempre sendo desmentido pelos fatos poucas horas depois.

A Receita desentoou de novo e quase implodiu a fanfarra quando garantiu provas de que fora Verônica Serra, filha do candidato do PSDB José Serra, quem pedira seus dados fiscais em uma agência de Santo André. Algo que um maestro experimentado como Lula sempre soube que não cabia nem em cantiga de ninar.

Para fugir da conotação eleitoral do enredo de horror instalado na Receita, o ministro da Fazenda Guido Mantega chegou a admitir que a então respeitada instituição pela qual deveria zelar é uma espécie de casa de mãe Joana, onde o número de quebras de sigilo é muito maior do que o dos políticos tucanos arrombados. Em qualquer país sério isso seria motivo de sobra para entupir a tuba.

Mas os ensurdecedores acordes desconexos não foram suficientes para inibir os animadores da banda. Ocupando todos os espaços possíveis, não faltaram trompas petistas para reverberar a falseta de que o próprio Serra teria armado o golpe contra a sua filha para obter ganhos eleitorais. Algo que só quem está acostumado com os labirintos dos esgotos poderia elucubrar.

Do outro lado, a trupe de José Serra continua sem achar o tom. Ora bate, ora assopra. Chega a produzir letra e música para o adversário, fornecendo-lhe todas as armas, como o fez ao entrar na Justiça Eleitoral para impugnar a candidatura de Dilma.

Hora e lugar errados.

Nada como uma sentença do TSE para embasar o discurso de que as vítimas são os algozes e que o PSDB queria era ganhar no tapetão. Melhor teria sido recorrer a outras esferas da Justiça, buscando não os trunfos eleitorais de que tanto precisa, mas o Estado de Direito. Cedo ou tarde o país aplaudiria.

Mas se Serra peca, o pecado capital vem do presidente Lula, que sempre se supera. Entoa a cantiga que quer. E nem se importa se desafina. Como general-mor da banda, faz o que o seu tino de poder manda. A seu bel prazer dispõe os melofones, fliscornes e pistões. E eles fazem tanto barulho que parecem ter êxito em esconder a desfaçatez de Lula ao admitir que soubera no início do ano – e dito pelo então governador de São Paulo – da hipótese de violação dos dados fiscais de Verônica. Nada fez, e ainda joga a culpa em Serra. “Ele não me alertou, ele se queixou”. E sua candidata Dilma Rousseff, é claro, segue a mesma partitura.

Mary Zaidan é jornalista, trabalhou nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, em Brasília. Foi assessora de imprensa do governador Mario Covas em duas campanhas e ao longo de todo o seu período no Palácio dos Bandeirantes. Há cinco anos coordena o atendimento da área pública da agência ‘Lu Fernandes Comunicação e Imprensa

Deu na Folha de S. Paulo
O alerta de Lula (Editorial)

Há 14 anos, em artigo na Folha, o atual mandatário acenava com os riscos de “mexicanização” e uso abusivo da máquina pública.

“Num país onde se pratica o fisiologismo explícito e o uso e abuso da máquina pública em proveito próprio, a reeleição pode conduzir a um processo de mexicanização”.

O alerta foi emitido em 1996 por Luiz Inácio Lula da Silva em artigo publicado pela Folha.

O líder petista, que havia dois anos perdera a eleição no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso, mostrava-se preocupado.

Via o risco de, aprovada a possibilidade de renovação do mandato, o PSDB transformar-se numa espécie de Partido Revolucionário Institucional -o PRI, que governou o México de 1926 a 2000.

Lula chamava a atenção para o peso desproporcional que os detentores do poder podem exercer num processo eleitoral por meio do aparelhamento o Estado e nebulosa arrecadação de fundos:

“O Estado mobiliza um conjunto de obras e recursos que podem ser postos a serviço de caixinhas eleitorais e troca de favores. Não é segredo para ninguém que as grandes obras públicas podem ser sobrefaturadas, e um significativo percentual delas acaba nas contas numeradas dos assessores dos mandatários, não para uso pessoal, dirão eles, é claro, mas para financiar a futura campanha. São rios de dinheiro […] para fazer propaganda de campanha e programas mirabolantes, com a mais sofisticada técnica de comunicações para ludibriar o eleitorado”.

Diante das pretensões da situação, favorável à continuidade de FHC para que o Brasil prosseguisse dando certo, Lula alfinetava: “E por que, então, não ressuscitar de uma vez o partido monarquista e colocar FHC no trono do Brasil para sempre?”.

Como se sabe, aprovada e emenda da reeleição, o tucano conquistou mais um mandato e foi sucedido pelo próprio petista. Os artifícios retóricos e os argumentos que constavam do artigo de Lula poderiam, quase que integralmente, ser agora esgrimidos contra seu próprio governo.

De fato, poucas vezes na história republicana o fisiologismo foi tão explícito e subordinou-se tanto a máquina pública ao proveito partidário.

Por certo, tornaram-se ainda mais caudalosos os rios de dinheiro vertidos na candidatura continuísta -e mais sofisticadas as técnicas de comunicação para “ludibriar o eleitorado”.

Utilizou-as Lula, com sua vocação de animador de plateias, para inventar a herdeira que, sem nenhuma experiência eleitoral, poderá ocupar seu trono – ou melhor, a cadeira presidencial.

As recorrentes comparações com a história mexicana, que ora voltam à cena, podem ser úteis nos torneios verbais, mas não vão muito além disso. Por mais longos que possam ser os ciclos de grupos políticos no poder, as democracias evoluídas (o que não era o caso do México) acabam sempre por experimentar uma saudável alternância administrativa.

São os fundamentos desse sistema de governo que, acima de tudo, precisam ser fortalecidos no Brasil.

Não há dúvida de que a experiência democrática em nosso país já atingiu padrões elogiáveis de funcionamento.

É preciso porém cultivá-la para que não se perca em consensos perigosos – mais ainda neste momento em que o continuísmo político poderá consumar-se em inédita hegemonia.

FRASE DO DIA

Na marcha em que vamos, na hipótese de vitória governista – que ainda dá para evitar – incorremos no risco futuro de vivermos uma simulação política ao estilo do PRI mexicano – se o PT conseguir a proeza de ser “hegemônico” – ou do peronismo, se mais do que a força de um partido preponderar a figura do líder.

Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República